sábado, 20 de março de 2010

Ética do sobrevivente e a desterritorialização

A questão contemporânea já não é a de cada um habitar uma casa própria, faltando a todos uma morada coletiva. O que se passa é que cada um está disperso entre três casas e integralmente não habita nenhuma
Não se trata de falta de condições de confiança intersubjetiva
A confiança que falta é a de cada um em relação a si mesmo, em relação à própria existência e continuidade, à própria capacidade de assumir uma história e fazer promessas
Assumir uma história pessoal, mesmo que sujeita a revisões permanentes e fazer promessas, mesmo que renegociáveis, implica em estabelecer com o “si-passado e com o futuro-si” uma relação de confiança. Eu só prometo e me comprometo quando posso minimamente confiar na minha capacidade de continuar “eu mesmo” no futuro. A ética do sobrevivente do mínimo eu, ao contrário, é totalmente avessa a promessas e muito resistente a qualquer territorialização
Um maciço investimento de si no “si mesmo” (sem passado nem futuro), um investimento concentrado e excludente, parece, então, ser a condição indispensável à sobrevivência física e psíquica do individuo. Já não lhe parece bastar uma casa fixa que o abrigue e defenda, por mais singular que seja, mas precisa de um casulo que ele, sem solo e verdadeira morada, possa carregar nas costas
No filme “O turista acidental”, no monologo inicial o personagem expõe sua filosofia de vida: Em uma viagem, como na vida, carregue uma bagagem mínima e bem empacotada, evite problemas e estranhos, esqueça de sua não-pertinência aos lugares, esteja preparado para tudo – para um súbito funeral, por exemplo – mas não se deixe tocar por nada; não se exponha a nenhuma perda.
A ética do sobrevivente é a que leva mais longe o caráter mortífero da contemporaneidade, convertendo o desligamento e desenraizamento impostos aos que transitam por não-lugares, em desenraizamento e desligamento desejados

FIGUEIREDO, L. C. “Ética, saúde e práticas alternativas”, in FIGUEIREDO, L. C. (1995) Revisitando as Psicologias: da epistemologia à Ética nas Práticas e Discursos Psicológicos .SP: EDUC; Petrópolis; Vozes

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