quinta-feira, 31 de maio de 2007

CONTOS MEXICANOS

Parte 1


A folha

Era uma tarde já quase azul e o sopro, que batia insistente, separou do galho a folha mais alta e verde e frágil. A pequenina não desejava cair e tentava em vão subir, enquanto as folhas mais velhas lamentavam seu trajeto rumo ao fim da existência.

Por algum motivo que não conseguia entender, decidiu-se: abriu-se inteira ao vento e, sem medo, aceitou sua queda. Em sua grandeza de folha pequena compreendeu o fato de que não iria mais subir, sentiu frio. Livre, desceu suavemente e voltou a si em meio a grama, onde repousavam inúmeras folhas tão verdes como ela.

Pela primeira vez seu peso não se sustentava em um único ponto, espalhava.

Então o vento, impaciente, arrancou dela o que poderia ser um início de satisfação e levantou, subiu, bailando de um lado para o outro até onde se encontrava no início e para cada vez mais alto. Era tão pressionada e lançada que não agüentou. Por estar onde não cabia, por estar onde queria, por alcançar um lugar que jamais poderia ser dela, se despedaçou. De tanta felicidade.

Caiu. Choveu-se.

Mil de si fecundando o solo e alçando vôo.


Compreensão

Decidira ir. Como quem desobedece a mãe e, diante de uma proibição expressa, espera que todos adormeçam para vivenciar o perigo. Era o que fazia: misto de desconforto e excitação. De fato, todos haviam adormecido. Aquela casa estranha. Passos silenciosos para não incomodar, acordar, cheiros e fronhas que não eram dela. Não deveria estar ali, mas tendo decidido, aproveitava-se do turbilhão para tentar se esquecer, se aquecer, mãos hálito bocas novas sensações toques que invadem lambem tiram a roupa sentem a pele na pele mergulham se perder me perder em mim em ti olhar para além da carne janela da alma anseios desejos vontades legítimas sensações sutis penetrantes penetrada. Ele não tinha o direito de mexer ali. Quem era ele, afinal de contas, para que ela se entregasse? O movimento daquela língua desconhecida, estranha, eram vermes violando a carne. Estava sendo violada: era somente carne e a carne, flácida, fedia. Sem saber o que fazer, sem nem saber ao certo onde estava, assustada se agarrou a ele que parecia também nada entender e parecia ser o único que poderia salvá-la, o quase-estupro que sofria, sofria. Ele, já meio atordoado, respondeu ao abraço forte, deixou que ela se agarrasse. E ela se tranquillizou. E ele se aquietou. E quase dormiu. E de repente tudo a sua volta se tornou sem encaixe, pontiagudo, disforme, diluído, coração disparado e ela não conseguia mais parar, de pensar, de mexer, de olhar à sua volta, e tudo tão escuro, e tudo tão estranho e precisava acordá-lo e acordou e precisava ir embora, (ele, que nesse ponto não entendia mais nada, era tão compreensivo... ele que depois se sentiria irado, puto, desprezado e desprezível, enojado, distanciado, descartado, impedido. Ele, tão compreensivo...) precisava que abrisse a porta, precisava que a levasse até lá, não, não podia esperar mais um pouquinho


Insisto acaso

Incômodo

em momentos-silêncio

Indefinidos

seus fundos olhos

me perdem,

me perco.

Em meio a tanta gente

insisto em encontrar,

ao acaso,

seu sorriso

desconfiado em boca tensa

Desconfiado do que se aproxima

porque atraído

eu,

em você,

indecifro.


Poema síntese

Me aproximo, inspiro, cheiro seu. Bocas em suspensa respiração. Lábios que não se tocam, que fecham olhos, relam ásperas peles, adormecem.


Nunca poderemos nos encontrar

Te olho sempre e de longe e sinto uma vontade boa de estar junto.

Imagino pele quente em toque suave. E um frio na barriga que me intimida e tremo.

Sei, de longe, que sempre me olha e pensa e imagina.

Sei que quer o que quero e é bom.

Sinto que nunca poderemos nos encontrar.


Escolhas

E como num ritual

tudo se repete

e novamente me levanto

com fantasmas rondando a cama

com sua imagem,

sua cor, seu brilho

Tudo é repetido

e nitidamente vivido,

tão igual

e tão intensamente sentido.

E todos olham pra mim

e todos se olham irônicos.

Paixões adolescentes

sobre sonhos infantis.

Como se escolhêssemos

pelo que sentimos.


Me deixe...

Te tocar, sentir, encostar, relar, me aproximar... Tudo o que eu queria... Eu queria... Deixe. Me deixe. E tudo parece tão absurdo e incompreensível e duro e seco... Apenas sentir algo menos áspero (queria), menos abrupto, menos abismo.

Transpiro impossibilidades...

No entanto e de certa forma, evito o carinho que tanto apreciaria e que logo afloraria em intensidades e necessidades, penetrantes intercâmbios, mergulhos dos quais sairia com a mesma violência que teria entrado. (Contorço e retorço me debatendo, coloco a cabeça para fora d’água tentando algo de fôlego). Satisfação de necessidades fisiológicas e só, intensidades fisiológicas. Não preciso envolver você, não preciso de mais ninguém nesse lamaçal: me satisfaço no banheiro (lugar por excelência da satisfação). E então ressecar, buscar o que não quero para evitar te envolver (deixe que eu não te olhe, deixe que não te sinta) e toda a naturalidade perdida e já não há mais compreensão nem mais nada a dizer. Não há mais braço estendido, pessoas querendo se conhecer ou janelas... Sem sensações, impressões ou ilusões, retomo o controle enquanto dedos definham.


Ríspido

“Pensar é estar

doente dos olhos”

Eu dentro de você

se perdendo em mim

distância sem palavra,

crítica vazia,

a arte,

a verdade da vida.

Mesmo bem em outro

ignoro

e quero.

Que serão dos corpos

ao se encontrarem?

Te espero e não observo,

poesia sem porém.

Não olho nem falo,

não chego ou aproximo,

desinteresso,

ignoro e quero.

Nas linhas finas

se cheiram lábios

e trêmulos e pernas

tempo que pára.

O destino, roda-viva,

sangue correndo na veia

escorrendo desconhecido

abismo.

Poesia inconclusão:

ilusões, satisfações,

nada mais?

Em meio a confusão

as mãos se tocam

te ilumino, te encontro,

te possuo, te desejo

e o fogo queima

sem barreiras.

Nada mais.


Comercial de Margarina

Há algo quando meus olhos (tateantes, hesitantes) esbarram fatalmente nos seus que me faz querer, e me envergonha de querer, uma vida simples. Comercial de margarina: gramado cuidado, cachorro, roupas coloridas, torradas quentes. E me assusta e é bom e simples e tranqüilo.

Olhos que escorregam e se assustam e levam tempo para se recompor e em um suspiro descortinam futuros e impossibilidades. Me retomo. Retorno em silêncio. Discreto, palpitante fujo para a última pose (a que foi abandonada pelo tempo que descortinou) e torço para que não me perceba, e torço para que sim, batendo em retirada...


Ecos em palavras rachadas

Ouço distante um algo eco perguntando do meu dia. Imagino estratégias de me distanciar. Em voz que nem me reconheço, automaticamente murmuro devolvendo a pergunta e era o que parecia precisar alguém para falar e falar e falar. Automaticamente. Preencher os vazios. Solidões escoradas umas às outras, ancoradas. Artimanhas fúteis tentando esquecer. Você. Já não consigo digerir suas metáforas. Você. Agora silêncio em mim. Disparo, aleatório, outra pergunta aguardada. Tiros de festim. Preencher. Palavras descabidas desesperadas. Estamos morrendo. Vazios. Lembranças de carícias e desejos em momentos inexplicáveis que nunca ousamos sentir. Caminhemos longe um do outro. Caminhemos longe um do outro. Ecos em palavras rachadas.


Parte 2


O pássaro e o jardineiro

Cuidando do jardim

lá está João.

Paciência,

esse é o tempo dos girassóis,

das rosas, das margaridas,

flores simples, sem pressa,

sabedoria,

ao contrário do que pensam

não se abrem pra sobreviver,

mas por alegria.

Lá está ele.

Humilde,

saboreando cada sorriso,

nosso João-de-Barro passa força.

Constrói a casa,

mas é passarinho

pobrezinho,

olhares-pedra o derrubam,

palavras-tiro.

Por reverência à vida

nosso João canta

rouxinol

“é melhor dar uma de palhaço

a deixar fechada uma porta da consciência”.

Passa por João-ninguém

nosso João de todos,

está a cada hora num lugar,

é como a felicidade

efêmero, fugaz,

deixa os risos e se vai,

pôr-de-sol, céu vermelho,

missão cumprida.

Mas procurar o João pra agradecer

não passa de bobagem.

Só com tempo pouco

tira-se fardo de alma de gente,

e assim o faz

lembrando em cada um

o jardineiro que espera

o pássaro que não desespera.

Por favor, João

não escuta os homens,

eles só dizem o que fazer.

Continua a ser João

que encanta

o que vê,

que vê

e só,

pois “Pensar é estar doente dos olhos”


O indiozinho

Era uma vez um índiozinho estranho e solitário que, em sua tribo, não conseguia falar com ninguém.

Às vezes se afastava de lá em silêncio, despercebido, trazendo consigo tudo que havia acumulado de mais importante. Empilhava então, diante de si, cerâmicas, arcos, flechas, zarabatanas e toda a comida que tinha. Altarzinho queimado com prazer e desprendimento. Da beleza de tudo que não era mais dele, ofereciam-se aos céus sinais de devoção e dedicação surda que chegava a todos os distantes.

Quem, naqueles momentos, deixasse o que estava fazendo e por acaso olhasse para cima era surpreendido e compreendia uma proximidade vinda de longe, uma sensação de presença.

No restante dos seus dias, insignificante, vivia de empilhar o suficiente para cada não ter mais grandioso que o anterior. Criou diante de si uma aura. Sobrevivia, oferendava, orgulhoso.

Assim passava os dias, se transformando naquele que não viam os que viam, que viam quando sumia. Cada vez mais perto, cada vez mais longe.


A joaninha

Era uma vez uma menina-gueixa. Silenciosa, dedicava-se a passar transparente por corredores sem fim, a andar nas sombras; dedicava-se a não ser vista. E assim seguia, invisível, até que o sol lhe tocasse os cabelos em uma manhã fria ou que alguém, distraído, lhe pousasse os olhos. Outro admirador a lhe causar constrangimento e uma pontinha de orgulho; felicidade clandestina... Contida, continha em si todos os segredos do mundo e todos os prazeres da alma às custas de um andar estático, de respiração orquestrada e de atenção disciplinada e responsável.

Seus sorrisos, às vezes, a traíam.

Dedicava-se, ainda, à música. Tentativas de perfeição. Artes de deslumbrar... Admiradores orgulhosos, constrangidos, clandestinos; em segredo do mundo, de longe, contidos, disciplinados, responsáveis; olhares e atenção.

Algo, no entanto, aconteceu e ela, antiga senhora, foi dominada; olhares possuídos e tomados, incontrolados e incontroláveis a atingiram; foi contagiada: Quando se sabe de algumas coisas não se pode esquecer.

Transformou-se em joaninha.

Era uma vez uma joaninha singela voando despreocupada, acabando com as pragas ao seu alcance, sendo bela. Pousando em mãos para trazer sorte, semeando sorrisos e bons presságios. Pousava, alegrava e saía, a joaninha.

Rumo a outra mão...

E quem tocava, se encantava.


Impressões

Existiam somente duas formas. Na maioria das vezes encontrava, mãos deslizavam e precisas apoiavam antebraços e girava, girava: “Confia criança, solta os pés, vamos voar, vamos girar, rodar, voar, vamos cair...”. Não chegava a tanto, voltava a si e, girando, se soltava e prosseguia. Sozinho e sempre. Uma sensação de auto-satisfação, um sorriso-estampa talvez pelo espetáculo do movimento, talvez por hábito de gostar. Motivos e combinações variáveis entre ele (sempre só) e elas.

Vez ou outra os olhos encontravam e permaneciam, resolvidos. Ele e quem quer que ela fosse se abraçavam e tudo era tinta fresca, cores vibrantes. Olhares fixos, corpos se misturando e se misturando ao em volta cenário em ondas reverberações marcadas em ondas camadas de forma espiralada. Subiam então, escalando o rastro, laranja como num quadro.


Castelo de cartas

Fugiu de casa realizando o sonho da infância sob uma justificativa qualquer, como conhecer a vida e se virar ou estudar e doutorar. Podia então restar-se com quem quisesse, onde quisesse. De casa em casa, de favor a aluguel, pensão, amigos, desconhecidos, tensões.

Do luxo e mimo de criança gordinha passou à quase necessidade e quase gostou de ser feito e sustentado daquilo que realmente era feito, indispensável. Experimentou e achou em um dia de folhas caindo e vento gelado que era a hora, um espaço que fosse a sua cara, objetos caros que o definissem, aquilo que poderia desfrutar e chamar lar. Foi juntando cacos de memórias misturadas e não alcançou aquele que teria sido, raízes brotantes encontrando areia fofa, concreto esfarelando, castelo de cartas. Abriu mão e saiu a viajar. Não conseguiu fixar.


A onda

Naquele entardecer a onda batia mais forte no píer. Era vontade. Ultrapassar aquelas todas pedras barreiras, ir mais além e além. Tinha em si uma força fluída por ora desconhecida, abria caminhos a serem seguidos. Reforçava, delimitava, refundava. Limites aos que seguiriam. Em fúria, ao se lançar espumas, acalmava, esparramava, voltava, devagar a si, o mar. Sorrateiro por entre grãos e tábuas, reunindo aquilo que havia sido, sendo em contra-fluxo a vontade de ser novamente. De longe: vai e vêm e só, borbulho e encontrões, sujeira e destruição.

Não conseguiria tragar a muralha muda à sua frente agora e, decidido, recomeços. Suas gotas filhas fios de sua água umedeciam a cada estrondoso encontro e escorriam, constantes, confiantes. Esperava indo e vindo. Qualquer que fosse construção, sabia, penetraria. E se, distraído ou esquecido, em algum momento se perguntasse, apenas sabia, sentia, forças muito superiores a si que só possibilitavam dele ser mar, único existir, único ser. Ser forte e investir contra o muro e aguardar.


Os antropólogos

Tratavam-se com a curiosidade respeitosa que se experimenta diante de uma língua ouvida pela primeira vez. Tudo desconforto e deslumbramento.

A espalhafatosa professora de Antropologia definia sua ciência como a arte de tornar o estranho familiar e o familiar estranho. Não lembrava se era exatamente isso, mas não importava. Postura de pesquisadores que só podem teorizar vivenciando. Um ao outro.

Deram o primeiro beijo da vida dela numa festa na casa dele completamente chapado esquecendo o que estava dizendo no meio das frases. Ela tinha ido sozinha até lá.

Fizeram uma viagem juntos, como se assim fosse possível se conhecer. Ela, pose de quem veio salvar o mundo e atura por um tempo a ignorância de quem não sabe do que necessita: missionária compreensiva. Ele, pose de quem viveu todas as dores do mundo e compreende, disposição para dedicar suas noites a descobri-la; tornar permanente o brilho no olhar dela: Galanteador malicioso.

Olhos ávidos se dedilhando cautelosos...

Dois seguros conhecedores de si, diante do enigma do abismo que o outro representa. Nem opostos, nem complementares, idênticos ou semelhantes. São mundos, delicados ecossistemas em rota de colisão. Reconhecem-se complexos não conseguindo se manejar, se recusar ou se incorporar. Reconhecem-se diferentes. Por mais que tentem se acessar com delicadeza, acabarão por se consumir em fúria, caso não se separem completamente.


Ele, eu e você

Ele colhe cuidadoso tudo o que a terra oferece, explora cada ramo e galho, pequena flor e alta árvore, encosta e entranha com olhos precisos, olhos-cirurgiões, eficiente. Cada vez mais rápido. Passa, colhe e segue. A terra torna-se infértil. Recusando-se talvez a mãos menos precisas e eficientes e rápidas. Esgotada? E onde pisava o cavalo a grama desaparecia e não mais nascia.

Eu experimento. Tentando entender quais as melhores condições de colheita e plantio, a época do ano, a água necessária. Busca da máxima fertilidade do sólo, das mais adequadas mudas, me deleito com cada pequeno resultado e exigo, agarro, despreocupado e aleatório, frutos e grãos e provo e imagino amanhã e depois e depois. Até sentir ter reunido as melhores condições. Até conseguir visualizar o limite daquilo que ainda não existe, potencial máximo inatingível. Entrego ou abandono. Às vezes árvores e plantas murcham. Estariam a minha espera? Outras, se oferecem prontas e maduras ao viajante seguinte.

Você semeia buscando os espaços que melhor responderiam ao seu plantar. Ao começar a brotar, do alto do trator, você revira e mói e explora e recomeça. Novamente despontam vidas novas. Repete-se o procedimento trator padrão. E o sólo cada vez mais fértil. E novamente e sucessivamente. Quando, já sem forças, cansados de tanto não serem, de tanto abandono para nova busca, brotos e sementes te perguntam porque não deixar que sejam, sem pensar você se vira e segue.


Carta metafísica antiga

Bom senhorita, depois da surpresa de descobrir seu aniversário vou tentar te dar um presente. Talvez essa idéia do presente que poderíamos pensar como se fazer na vida do outro seja bem egoísta e egocêntrica, talvez, pensando e torcendo que você goste de mim e gostaria de me ter presente, uma carta (escrita à mão para melhor reconhecimento e lembrança) talvez seja um ótimo presente.

Resolvido o presente, fico pensando: porque, afinal de contas, eu quero te dar um presente de aniversário? Eu gosto de você sem saber exatamente a razão já que você brinca comigo, você não me conta várias coisas suas, é sempre grossa e rabugenta, muitas e muitas vezes atormentada ao extremo. Tá certo, podem ser esses mesmos os motivos, mas acho que muitos nem são e os outros não são suficientes.

(Vou tentar continuar escrevendo agora esse seu presente que comecei antes do seu aniversário. Hoje é domingo triste, eu sentado nesse cinema quase vazio na maior chuva, lendo um pouco de realismo fantástico, pensando que eu deveria ficar sozinho, que não estou dando certo com quem estou e esperando uma outra pessoa que com certeza não virá).

Eu gosto de não te compreender, do seu jeito genuinamente Clarice, imobilizada com os perigos que viver traz. Imobilizada e deslumbrada. Essa minha interrogação de você me coloca em constante curiosidade, curiosidade que talvez e tristemente só exista pela incompreensão. Seria por estarmos muito próximos? Ou por vivermos uma lembrança de um pequeno trecho nosso que acreditamos ser o outro inteiro? Trecho que esquecemos ser trecho...

Suas certezas me deixam admirado e intrigado, certezas atormentadas e conscientemente infundadas e tão retas nos seus caminhos tortuosos, tão mancas, tão firmes...

Adoro ainda o modo como somos distantes e nos afastamos, nossa impossibilidade de contato, nossa vontade. Quanto mais odeio, mais necessito dessa sensação, desse querer impossível, tosco e óbvio que tanto expõe minha impossibilidade de gostar de alguém, estar com alguém...

Se nossa afeição e proximidade com uma pessoa muda com o tempo é sinal da inconsistência das nossas relações. Se enxergamos e lembramos de nossos antigos amores a partir de como estamos nos sentindo e de como estamos percebendo eles hoje significa que ninguém vale pelo que foi, estamos afogados por aquilo que o tempo pode nos oferecer...

(Voltei do cinema, a menina não veio e o filme era sobre um cara que descobre que vai morrer e começa a brigar e se afastar de todo mundo. Eu ando assim, me afastando de quem eu gosto sem saber direito o porquê... Aliás, encontrei com uma paixão do 1o ano de faculdade e nem senti nada, engraçado, né?).

O que a gente vai fazer com a nossa vida? O que vamos nos tornar? O que estamos fazendo e nos tornando? Pra que essa vida? (Lembra do questionário que a gente fez sobre o sentido da vida?) Não pode ser só por pessoas que servem aos nossos interesses presentes e que são descartáveis. De que serve a fotografia, a poesia, a psicologia, o trabalho para a transformação social??? Para aliviar nossas culpas? Para encontrar amigos, escolher uma família?

São só outras drogas? Drogas como TV, cigarro, doces, política, internet (a de casa não tá funcionando e estou subindo pelas paredes), sorrisos, beijos, sexo, formas de disfarçarmos sensações e apressarmos o tempo e enganarmos nossa mediocridade e despistar a morte.

Pra que tanto esforço?

Pra que escrever uma carta? Não sei, mas escrevi. Talvez ela seja como um abraço forte quando você precisar, eu um pouco sério, um pouco besta, um pouco sorrindo, dois poucos dramático, meio mexicano, sabe? Talvez seja uma resposta ao que você escreveu, um incentivo a você escrever mais.

Eu, presente no seu aniversário


Parte 3


Pra começar...

Eu saio e espero ter deixado claro que quero que você venha atrás de mim, já que não posso abrir a boca e me deparar com minha própria baixeza, com minha fraqueza. Você me olha como se me conhecesse e soubesse dos meus truques e vergonhas e me expõe, me deixa sair sem me acompanhar e eu sinto o peso de cada passo e seu olhar sobre eles e quase desisto, mas agora é tarde. Você sabe que eu não vou parar por mais que eu queira e por mais que você também deseje e saiba que basta uma palavra, um murmúrio para eu voltar e ficar e esquecer, uma palavra que você não murmurará e posso ver o sorriso disfarçado no seu rosto sério, preso entre seus dentes. Subo, deito e me cubro, ignorando o suor como se lençóis abraçassem e sinto raiva e a sua falta. Deito, como em posição de enterro, mãos sobre o peito e sinto como se, a qualquer momento, fossem me invadir todo o vazio e o silêncio que me cercam. Deito de bruços e aguardo sem saber exatamente o quê, ou sabendo exatamente o quê sem resquício de esperança; estranhamente, aguardo. Você chega e eu finjo que não vejo e você finge não ter pressa e passa pelo banheiro, a luz derramando um feixe suave pelo meu corpo coberto e troca de roupa e torna a deixar tudo em sombra e desliza também suave e me abraça, encosta sua boca na minha orelha e eu posso tirar o lençol de cima de mim, tenho a sua pele na minha, tenho seu rosto no meu.


Sonhos

Às vezes acho que sonhamos entrelaçados. Cheiro forte, seu preferido, nossa faculdade, suas flores, as amarelas que sempre cobrem tudo por lá, sempre sempre, por tudo, agora esparramadas: mesas, cadeiras, carros, amarelos, amarelo amaciando o chão: Pessoas passando como borrões, como se eu e você, por algum momento de entrega, decidíssemos tirar os óculos e confiar e ter apenas um ao outro, único foco você, único foco eu, quadro impressionista, quadro de Van Gogh, amor além da vida, destacados do amarelo no amarelo, borrões que passam passando, eu te olhava, você me olhava (Sabia que cada um de seus olhos oferece um olhar diferente para mim? Da última vez o direito me pedia ajuda enquanto o esquerdo me olhava meio desconfiado com um sorrisinho, mas era um sorriso bom, mas mesmo assim eu só conseguia olhar pro direito e agora nem sei se a palavra correta seria oferecer ou apresentar, se seria ter). E ríamos e chorávamos falávamos de mim e de você em demasia, em silêncio, como às vezes fazemos quando eu ou você estamos frágeis demais para falar e você sabe que nos entendemos e nos vemos fácil e nos sabemos sempre e de repente o tempo tinha passado e estávamos velhos, mais ainda do que previa o nosso combinado de nos casarmos para envelhecer juntos e nos cuidarmos e não havíamos feito nada disso, nem tínhamos adotado filhos, tínhamos nos perdido no caminho e os borrões eram outras pessoas que tínhamos, tínhamos outras pessoas, pessoas-borrões, sabidos de nossa perdição e íamos embora com eles, mesmo querendo ficar, nos deixávamos levar, não tínhamos coragem de ficar juntos. Eu sonhei, você sonhou, nos afogamos sem conseguir morrer, somente com a água até o nariz.

Entrelaçados, você acordou estranha.


tu, tu, tu, tu, tu, tu...

Houve um momento no qual estava tão envolvido que deixei de escrever toda a poesia que sentíamos ao nos olharmos, as histórias de café da manhã e lavagem de louça.

Houve um momento em que esqueci que vivíamos poesia e achei que nada havia de belo em lavar e comer. Foi quando deixei de escrever sobre qualquer coisa que me envolvesse. Calei. Nesse momento precisava da sua presença.

Houve um momento em que esqueci como se escreve. Histórias, poesias, não há o que ser visto, não há o que sentir.

Ou te via, ou, de tão intenso, virava os olhos e me protegia. Em um momento olhei para você, te atravessei e assustei. Te enxerguei de cima. Será que era só isso? Será que mesmo com tudo isso não há mais nada? De uma hora para outra? Não me lembro do que aconteceu. Invento sensações para não sentir e enlouquecer.

Lamentavelmente escrevo tentando recuperar os cacos e colá-los. Voltamos a nos olhar e nos querer. Não brinco mais. De tanto tornar tudo uma grande brincadeira. Tenho medo de me tornar o amargo que sou. Rubens Olhos Opacos. Estou ocupado. Não quero ir para casa sozinho. Não quero sair de casa sozinho.


Fios escorrendo pela nuca

Você de costas. Rosto abaixado, pendendo para o lado, quase como se quisesse me olhar. Cabelos soltos descendo pelas costas, leves. Me aproximo, sinto sua respiração, deslizo meus dedos pelos seus braços subindo até seu pescoço. Prendo seus fios em um dos ombros, meu queixo no outro. Te trago para junto de mim. Uma só respiração. Encosto meu rosto no seu, passeio por pernas, quadril, barriga. Batimentos acelerados. Quero parar. Arranho seu rosto com minha barba até o seu pescoço. Não quero prosseguir. Sua mão subindo pelo meu pescoço, acariciando minha cabeça. Como se fosse possível uma proximidade maior. Não controlo minhas ações, lábios, dentes, pêlos eriçados, corpos com vontade própria. Sabem caminhos dos quais tento desviar. Sem convicção. Culpado por querer. Querer que só satisfaz por alguns momentos. Fecho os olhos.

Falhei. Não quero encarar.


Telefone

Tento lhe sentir...

não alcanço.

Atado em meu próprio quarto;

restrito.

Impedido de ir

aonde antes

considerava meus domínios.

As horas passam,

destroem,

corroem tudo em minha volta,

menos seu rosto e sorriso.

Fotos não envelhecem

e você,

linda, arrumada...

sensual,

a meu lado,

barba por fazer, despenteado...

largado.

Enfim o telefone toca.

Sete minutos de atraso!

Mas está tudo tão escuro...

Poderia finalmente

sentir a voz de minha foto,

dar-lhe vida;

acalmar minha alma,

dar-lhe paz.

Maldição!

Não consigo acha-lo.

Segue chamando...

De onde vem o som?

Não sei nem em que direção

partir para procurá-lo.

Por que está tudo

tão disforme e diluído?!

Só o que vejo são vultos.

Esbarro no porta-retratos

que tomba,

esfacela.

No piso, cacos de vidro cortantes.

Sobre seu rosto pisado, sangue.

A janela abre,

sinto frio por dentro.

O vento leva os papéis para fora,

para a tempestade.

Minhas poesias...

Lama.

Ele toca próximo ao meu ouvido,

mas quando me viro

desaparece

e se cala.

A chuva cessa,

a persiana fecha.

Mal se distingue

o corpo único,

sentado e encolhido,

no canto do enorme aposento.

Mal se percebem

lágrimas

quando já se está molhado.


Eu, você, todos nós

Entre: disputa e segurança. Você relaxa e assiste, comodidade. Quase sem contato, quase só espetáculo. Triângulos infinitas trocas de olhares comunicações silenciosas.

Dois: Afastamento-aproximação em uma calma tensa. Pêndulos oscilando, simpatia, apatia escolha, conforto. Interrogações. Idas e vindas? Ilusões? Batidas cardíacas aceleradas. Nós. Há?

O outro (ainda não mencionado): Comparações? Imagem constante distante presente. Outras composições. Falta de sentido mantida ou morna constância refletida?

Eu, ele, o outro, você: Dança de cadeiras dança de sonhos e medos e análise combinatória várias você vários eu, é? Várias situações momentos a dois três quatro hoje sempre nunca aproximação ilusão. Isso sempre te acontece?

(Homem frustrado na cama de olhar baixo - isso nunca me aconteceu antes)

Menino (tentando falar grosso, ser ouvido, gago): Alucino só impressão minha ou sou sensível e consigo perceber entrelinhas até quando o quê

Tentativa de definição para algo já entediante tempestade em copo d'água: Espelhos teatro ensaio da mudança que não vem que venha parque de diversões alucino alucino eu sou legal não estou te dando mole maldita ansiedade que não deixa as coisas rolarem e simplesmente acontecerem sem tentar entender sem que você perceba e afujenta afujenta e queria sentar e conversar e olhar nos olhos e descansar e e e e e e

(Aqui faço uma pequena pausa. Preciso que as frases sejam, a partir de agora, mais estruturadas e seguras. Aproveito então para me distrair. Retomo os pequenos afazeres. Assim, em seguida, posso pensar em voltar)

O coro: Existe volta? Quem pensa em voltar? Com quem você pensa que fala?


Reviro

Se te transformo em musa

te afasto

e em olhos inundados

faço,

te escrevo,

conservo

preciosa.

Se ouso tocar

caio, me firo,

reviro,

experimento.

Quero não sentir

mas não paramos de tecer

enredo

imóvel

paro.

Quero.

Não sei o que há em ti

que me fecha

que me abre.

Eu, em você,

fluxo.


Oferenda

O que há

em meio ao abismo dos teus olhos

profundos, distantes e cortantes perdidos

que me machucam deliciosamente?

Presença de grandeza tímida

pisca pesado,

respira em não respirar

caminhando em bailarina

O que há

de mistério em teu sorriso

(dúvidas em quadros impressionistas)?

Destacada em frivolidades

Tua diferença me rebaixa e me ausenta

reflete o que de mim

é bruto, oculto e incerto.

Indiferente,

reflete o que é repetição.

Algo em você

ambíguo brilha-apaga,

me deixa inquieto,

me põe em desconforto e movimento:

Pensar quando não é hora,

desejar quando não se deve,

imperar o reticente

destituindo os mil significados do teu silêncio

até que sejamos você e eu

nus e envergonhados

sem saber o que fazer.

Me perdendo em fluxos

de calado respeito

em aproximações lúdicas frustradas,

ofereço olhar firme,

mão trêmula,

ofereço insuficiente presença.

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