domingo, 14 de dezembro de 2008

O futebol, o Brasil e a meritocracia

Por Fernando Rodrigues


Há ainda um cheiro de pré-história sob vários aspectos quando se trata da organização do esporte mais popular do país. Mas também são inegáveis alguns avanços no futebol.

A conquista do campeonato brasileiro de 2008 pelo São Paulo Futebol Clube ajuda a disseminar no Brasil um valor quase inexistente no país: a meritocracia. Vence quem se esforça e trabalha mais ao longo de todo o campeonato.

Os torcedores de outros times ficam chateados, claro. Reclamam do gol irregular do SPFC no jogo de ontem (7.dez.08), contra o Goiás, na vitória por 1 a 0 (o atacante Borges estava impedido). Fala-se também que o SPFC não jogou um futebol dos sonhos ao longo da competição (é verdade).

Os mais atentos também deverão notar que os erros de arbitragem ocorreram para todos os lados no campeonato. Para citar apenas um, em 17 de agosto, o Grêmio ganhou do São Paulo por 1 a 0 com um gol de Perea também totalmente impedido.

Sobre jogar um futebol mais vistoso, cheio de lances "a la seleção de 82", a pergunta que fica é: qual equipe no futebol hipercompetitivo de hoje consegue atuar dessa forma? Resposta: nenhuma.

Tudo somado, a vitória do São Paulo representa a premiação, por mérito, à equipe que mais se preparou e se organizou para vencer. O SPFC gasta R$ 12 milhões por ano em um centro de treinamento fora da cidade de São Paulo, onde treinam cerca de 400 garotos. O técnico do SPFC, Muricy Ramalho, é um dos mais longevos no cargo no Brasil, mostrando que a regularidade administrativa é um valor necessário não apenas em governos e empresas, mas também no esporte.

Antes, o futebol era cheio de octogonais e quadrangulares decisivos. Havia rebolos, repescagens e chances de viradas de mesa. Equipes completamente desorganizadas, sem interesse pelos treinos diários, acabavam vencendo um ou dois jogos no final do ano e sagravam-se campeãs.

Nos últimos seis anos, equipes tradicionais tiveram de se submeter a uma passagem pela segunda divisão do futebol. Palmeiras, Grêmio e Corinthians são exemplos de superação. Devem ser aplaudidos. Desceram e subiram pelos seus próprios méritos. Mereceram cair. Mereceram subir. Assim deve ser em todos os setores da sociedade.

Alguns classificarão de sociologia antropológica de botequim, mas há uma mensagem relevante no futebol. No passado, com a bagunça de campeonatos com 40, 60 e até 100 times, chaves coloridas e vale-tudo no final, a mensagem era: não adianta trabalhar duro todos os dias; no Brasil, no final sempre dá-se um jeitinho de obter uma vitória "no talento" (sic).

A imensa maioria dos brasileiros ama o futebol. O sistema de disputa dos campeonatos nacionais exerce grande influência sobre uma massa enorme de pessoas. A bagunça reinante no passado deseducava os cidadãos por exalar um péssimo costume: "Trabalhar e se esforçar para quê? Quando chegar a hora 'h', a gente sempre dá um jeito".

Pelo atual modelo de pontos corridos (iniciado em 2003 e historicamente defendido pelo meu amigo e também blogueiro Juca Kfouri), é sempre enorme a chance de o campeão ser o que mais se prepara e o que tem a estrutura mais séria. Todo jogo é importante. Todo dia é dia de trabalho. Para ser campeão brasileiro de futebol agora é necessário jogar todas as partidas como se fossem a última (comento no final as últimas suspeitas de fraude nas arbitragens).

Milhões de brasileiros humildes têm no futebol uma de suas únicas alegrias. Agora, de maneira subliminar, esses mesmos brasileiros podem enxergar no esporte algo além do jogo. As disputas entre os 20 times da elite do futebol são também um exemplo de como o mais aplicado acaba, quase sempre, premiado ao final.

A possibilidade de cair para a segunda divisão e voltar pelo seu esforço próprio é também um incentivo a todos os brasileiros.

Acostumado a fazer a cobertura da política brasileira, recheada de casuísmos e fisiologia, é alentador ver o futebol dar um exemplo de continuidade e regras claras.

Tudo isso não é pouca coisa. A meritocracia é uma característica vital de sociedades desenvolvidas. É bom que no Brasil comece a vigorar exatamente na mais popular de todas as manifestações culturais, o futebol.

Uma ressalva e uma revelação:

1) nem sempre o melhor, mais preparado e mais esforçado pode vencer no campeonato de pontos corridos. É verdade. São exceções que confirmarão a regra. Mas nos seis campeonatos até agora realizados, ninguém tem dúvida sobre a justiça dos resultados (Cruzeiro, Santos, Corinthians e SPFC foram os melhores quando venceram).

Há também sempre o risco do "fator extra-campo": quando árbitros são subornados ou forçados a produzir determinados resultados. É o Brasil profundo. O campeonato de 2008 teve (como outros anteriores) suspeitas sérias de pressão criminosa nos bastidores. Ainda não há notícias suficientes para julgar o que se passou neste ano, mas será lamentável se acabar surgindo evidência de manipulação de resultados por parte das arbitragens/dirigentes. Perderá o futebol, mas perderá muito mais o Brasil.

2) Torço para o SPFC. Hexa.

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