terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Eus

Quando ela partiu fazia muito frio, e depois de três dias, de repente, subitamente, precocemente, chegou o verão. Seu tailleur, muito grosso, tornou-se inutilizável. Como não trouxera nada para o clima quente, comprou um vestido de verão numa butique. (...)
Depois, passando na frente de uma grande loja, viu-se repentinamente diante de uma vitrine recoberta por um imenso espelho e ficou estupefata: aquela que via não era ela, era uma outra ou, quando olhou mais demoradamente, era ela, mas vivendo outra vida, a vida que teria vivido se tivesse ficado no país. Aquela mulher não era antipática, era até comovente, comovente demais, comovente de chorar, lamentável, pobre, fraca, submissa.
Ela foi tomada pelo mesmo pânico de outros tempos, em seus sonhos de exílio: pela força mágica de um vestido, ela se via presa numa vida que não queria e da qual não seria capaz de se libertar. Como se, no começo de sua vida adulta, ela tivesse tido diversas vidas possíveis entre as quais acabara por escolher aquela que a havia levado para a França. E como se essas outras vidas, recusadas e abandonadas, continuassem sempre à sua disposição e, enciumadas, a espiassem de seus refúgios.



Milan Kundera A Ignorância

Um comentário:

Kely Cristina S. Felício disse...

Que legal, me lembrei do filme "A dona da história", com a Marieta Severo. Pensar que cada instante é prenhe de tantas vidas, posso respirar diferente, amar diferente, cantar diferente, usar uma outra cor, um outro vestido, um outro cheiro, uma nova alma. Como diz a Clarice, "Vou caminhando e deixando meus corpos pelo chão". Bjs e um brinde às vidas possíveis que cada um ousa viver.