A joaninha
Era uma vez uma menina-gueixa. Silenciosa, dedicava-se a passar transparente por corredores sem fim, a andar nas sombras; dedicava-se a não ser vista. E assim seguia, invisível, até que o sol lhe tocasse os cabelos em uma manhã fria ou que alguém, distraído, lhe pousava os olhos. Outro admirador a lhe causar constrangimento e uma pontinha de orgulho; felicidade clandestina... Contida, continha em si todos os segredos do mundo e todos os prazeres da alma às custas de um andar estático, de respiração orquestrada e de atenção disciplinada e responsável.
Seus sorrisos, às vezes, a traíam.
Dedicava-se, ainda, à música. Tentativas de perfeição. Artes de deslumbrar... Admiradores orgulhosos, constrangidos, cladestinos; em segredo do mundo, de longe, contidos, disciplinados, responsáveis; olhares e atenção.
Algo, no entanto, aconteceu e ela, antiga senhora, foi dominada; olhares possuídos e tomados, incontrolados e incontroláveis a atingiram; foi contagiada: Quando se sabe de algumas coisas não se pode esquecer.
Transformou-se em joaninha.
Era uma vez uma joaninha singela voando despreocupada, acabando com as pragas ao seu alcance, sendo bela. Pousando em mãos para trazer sorte, semeando sorrisos e bons presságios. Pousava, alegrava e saía, a joaninha.
Rumo a outra mão...
E quem tocava, se encantava.
Eu, você, todos nós
Entre: disputa e segurança. Você relaxa e assiste, comodidade. Quase sem contato, quase só espetáculo. Triângulos infinitas trocas de olhares comunicações silenciosas.
Dois: Afastamento-aproximação em uma calma tensa. Pêndulos oscilando, simpatia, apatia escolha, conforto. Interrogações. Idas e vindas? Ilusões? Batidas cardíacas aceleradas. Nós. Há?
O outro (ainda não mencionado): Comparações? Imagem constante distante presente. Outras composições. Falta de sentido mantida ou morna constância refletida?
Eu, ele, o outro, você: Dança de cadeiras dança de sonhos e medos e análise combinatória várias você vários eu, é? Várias situações momentos a dois três quatro hoje sempre nunca aproximação ilusão. Isso sempre te acontece?
(Homem frustrado na cama de olhar baixo - isso nunca me aconteceu antes)
Menino (tentando falar grosso, ser ouvido, gago): Alucino só impressão minha ou sou sensível e consigo perceber entrelinhas até quando o quê
Tentativa de definição para algo já entediante tempestade em copo d'água: Espelhos teatro ensaio da mudança que não vem que venha parque de diversões alucino alucino eu sou legal não estou te dando mole maldita ansiedade que não deixa as coisas rolarem e simplesmente acontecerem sem tentar entender sem que você perceba e afujenta afujenta e queria sentar e conversar e olhar nos olhos e descansar e e e e e e
(Aqui faremos uma pequena pausa. Teremos aqui frases um pouco mais estruturadas e seguras. Aproveitemos para nos distrair. Retomemos os pequenos afazeres. Assim, podemos pensar em voltar)
O coro: Existe volta? Quem pensa em voltar? Com quem você pensa que fala?
Tocar você
"Desculpa, digo, mas se eu não tocar você agora vou perder toda a naturalidade, não conseguirei dizer mais nada, não tenho culpa, estou apenas sentindo sem controle, não me entenda mal, não me entenda bem, é só esta vontade quase simples de estender o braço para tocar você, faz tempo demais que estamos aqui parados conversando nessa janela, já dissemos tudo o que pode ser dito entre duas pessoas que estão tentanto se conhecer, tenho a sensação impressão ilusão de que nos compreendemos, agora só preciso estender o braço e, com a ponta de meus dedos, tocar você, natural que seja assim: o toque, depois da compreensão que conseguimos, e agora."
Caio Fernando Abreu
Te tocar, sentir, encostar, relar, me aproximar... Tudo o que eu queria... Eu queria... Deixe. Me deixe. E tudo parece tão absurdo e incompreensível e duro e seco... Apenas sentir algo menos áspero (queria), menos abrupto, menos abismo. Transpiro impossibilidades...
No entanto e de certa forma, evito o carinho que tanto apreciaria e que logo afloraria em intensidades e necessidades, penetrantes intercâmbios, mergulhos dos quais sairia com a mesma violência que teria entrado. (Contorço e retorço me debatendo, coloco a cabeça para fora d’água tentando algo de fôlego).
Satisfação de necessidades fisiológicas e só, intensidades fisiológicas. Não preciso envolver mais ninguém nesse lamaçal: me satisfaço no banheiro (lugar por excelência da satisfação). E então ressecar, buscar o que não quero para evitar te envolver (deixe que eu não te olhe, deixe que não te sinta) e toda a naturalidade perdida e já não há mais compreensão nem mais nada a dizer.
Não há mais braço estendido, pessoas querendo se conhecer, não há mais janelas... Sem sensações, impressões ou ilusões, retomo o controle enquanto dedos definham...
Comercial de margarina (deslizes)
Há algo, quando meus olhos (tateantes e hesitantes) esbarram fatalmente nos seus, que me faz querer e me envergonha de querer uma vida simples. Comercial de marganina: gramado cuidado, cachorro, roupas coloridas, torradas quentes. E me assusta e é bom e simples e tranqüilo. Olhos que escorregam e se assustam e levam tempo para se recompor e em um suspiro descortinam futuros e impossibilidades. Me retomo. Retorno em silêncio. Discreto, palpitante, fujo para a última pose (a que foi abandonada pelo tempo que descortinou) e torço para que não me perceba. E torço que sim, batendo em retirada...
O bobo e a princesa
Era uma vez uma princesa muito sensível e exigente. Rolavam, no reino, boatos de que, mesmo embaixo de cem colchões, ela teria sentido uma ervilha e não teria conseguido dormir. Ao que parece, a ervilha tinha sido posta ali para comprovarem que ela seria realmente uma princesa.
Fazia pouco tempo, um bobo da corte andarilho e nômade teria parado por aquelas bandas para oferecer seus serviços e desde a primeira vez que a viu soube que era princesa, sem ervilhas ou colchões. Deslumbrado, aguardava seus pronunciamentos que vinham sempre do alto, da sacada do palácio. Atordoado, pensava na princesa e na cidade foi ficando, foi ficando... Aos poucos foi percebendo que o pouco que poderia oferecer àquela que parecia tudo ter eram sorrisos e divertimento. Tentou marcar uma apresentação, mas princesas dificilmente tem tempo e quando tem, seus ajudantes e assessores evitam que cheguem perto os de sangue comum. Enquanto isso, nosso bobo, esforçado, nunca tinha sido tão engraçado e gracioso diante do espelho. Fez amizades, descobriu atalhos e se perdeu, até o Rei ele convenceu. Estava perto de conseguir a audiência, já podia sentir o perfume de flores no palácio, quando descobriu que a princesa tinha ido para um reino muito distante dali...
2 comentários:
Belos sentimentos...
Gosto do que escreves, Rubens. É (surpreendentemente) sincero e doce.
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