Josias de Souza
Imagem aérea da Avenida Paulista. Deserto. Corta para a entrada do Shopping Iguatemi. Ermo. Fecha no pórtico do restaurante Fasano. Cerrado. Um cachorro vira-latas esparge urina na calçada defronte.
Voz do capo Marcola, em off, com o som nasal de celular: “Só a violência salva o Brasil. O crime não é o problema. É a solução. O PCC é o caos, matéria-prima para o recomeço. A delinqüência é o início da solução, a verdadeira renascença”.
O roteiro do longa-metragem sem título –‘São Paulo em Transe’?—escorre ininterrupto dos lábios de Marcola. As palavras saem-lhe em catadupas. Entregue ao isolamento da solitária de segurança máxima, o Glauber Rocha do mal dita os movimentos ao seu exército de atores invisíveis.
Câmera fechada no torso de um PM. Tiro no peito. A lente vai abrindo lentamente. Rosto. Outro tiro. Na testa. Corpo recostado no banco de uma viatura velha. Sangue espirrado. Nos vidros. No forro do teto.
A câmera continua abrindo. Plano geral. Ônibus em chamas ao fundo. Três bandidos gargalham. Pistolas de uso exclusivo do Exército. Cheiro de inépcia. Para a polícia, armas velhas e salário baixo. Para o tráfico, fronteiras abertas e dinheiro graúdo.
Close-up num nariz. Branco. Enorme. Bem-nascido. Câmera gira pelo ambiente. Sala decorada com esmero. Três carreiras de cocaína no centro de uma a bandeja. Fecha numa TV. Sintonizada no Jornal Nacional. Willian Bonner, de São Paulo, ao vivo: “A cidade vive dia de pânico”. O nariz gigante, bordas avermelhadas, balbucia: “Que horror!”
Corta para os lábios de Marcola, no celular. Voz pausada. Mas firme. “Não há existência fora da mídia. A sociedade nos vê agora. Cansamos do departamento de figurantes do mal. Somos protagonistas.”
Plano aéreo sobre o Palácio dos Bandeirantes. Corta para o gabinete de Cláudio Lembo. Olhos grudados no telefone. Alckmin não liga. Serra não liga. FHC não liga. A política só é solidária na divisão verbas e cargos.
Plenário do Senado. Bocas de senadores rindo. Barrigas imensas. Discursos histriônicos. “A culpa é do PSDB, que governa São Paulo há 12 anos”, diz um. “Não, não. A culpa é do PT, que segurou as verbas”, contradiz outro.
Locução de Marcola, em off, sobre imagens de ambulâncias superfaturadas, deputados contando dinheiro. “A Casa Grande não aprende”, diz o cineasta do mal. Ele dita as últimas ordens ao celular: “Matem, queimem, barbarizem”. Exércitos de negros e cafuzos marcham sob o sereno de São Paulo. A cidade converte-se no insolúvel levado às últimas conseqüências.
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