domingo, 18 de dezembro de 2005

Sobre a bondade (meu modelo)

Acho patético como gente boa tem a tendência de se oferecer para fazer o bem por motivos sentimentais. O jeito certo é servir ao Bem como o guarda que vi no cruzamento de Ashquelon: cansado, já não tão jovem, cara redonda, barriga saliente, deitado de bruços no chão para ajudar os feridos presos sob a carroceria de um caminhão capotado enquanto a ambulância não chegava. Foi alguns anos atrás, mas eu me lembro de todos os detalhes: ele se arrastando na poeira, enfiando a cabeça pela porta amassada, tentando reanimar uma mulher inconsciente. Mas no instante em que a equipe de resgate, e o médico ou enfermeiro assumiu seu lugar, levantou-se e virou de costas; não havia nada que pudesse fazer para salvar os feridos. Assim, imediatamente voltou a orientar o congestionamento de trânsito. Pronto. Em frente, moça. Vamos andando. Acabou o espetáculo.
De forma seca. Até mesmo rude. Com voz rouca de cigarros. Alheio ao cabelo cheio de lama, ao quepe amassado e ao filete de sangue sujo que escorria de seu nariz. Manchas de suor nas axilas e uma mistura de suor e poeira em todo o rosto. Vários anos se passaram, mas não me esqueci dessa combinação peculiar de bondade e frieza. Até hoje tenho a esperança de servir ao Bem como aprendi com aquele policial: não com emoção desenfreada, e sim com extrema precisão. Com a sensação de cumprir o dever, uma sensação que chega a ser quase rude. Com a mão firme. Mão cirúrgica.

Amoz Oz, Não Diga Noite

Nenhum comentário: